O “conceito raskolnikoviano” não põe a moral como uma “categoria” a ser superada – no sentido de ruptura moral –, ele divide a humanidade em duas categorias: a dos homens ordinários e extraordinários. Para os ordinários a moral é fator punitivo e limitante, para os extraordinários, não. O que há é uma “exceção da moral”, fazendo com que os humanos extraordinários desenvolvam suas potencialidades – o que seria “benéfico“ para toda a humanidade, já que esse “desenvolvimento de potencialidades” traz “benefícios coletivos”. Essa exceção moral é ética, num sentido teleológico da busca pelo “bem comum” (ainda que esse “bem comum” venha a se efetivar sacrificando os direitos individuais de algumas pessoas). Dessa forma, seria facultado ao homem extraordinário burlar regras morais para que seu projeto grandioso não seja interrompido por questões materiais. Essa possibilidade de quebra das regras morais é facultada aos homens extraordinários, que teriam o discernimento para antever a necessidade coletiva dessa quebra – que não seria mero exercício diletante dos extraordinários. Deve-se entender, portanto, o “homem extraordinário” como portador de uma responsabilidade (assumida no exato momento em que usou a faculdade da exceção da moral) para com a imanência de quebrar regras morais somente quando estiver nessa situação. Nesse ponto, põe-se em prática uma nova moral: a “moral da exceção”. O “homem extraordinário” é, portanto, responsável por seus atos – pois age livre, deliberada e conscientemente –, o que não há é uma reprovação moral partindo de sua consciência para seus próprios atos – ainda que os ordinários o condenem (e é o que ocorre na maior parte das vezes).
A incidência do “homem extraordinário” é bem menor que seu oposto – o “ordinário”. Nesse sentido, devemos atentar para o fato de que – se, dentre milhares de “ordinários” há apenas um “extraordinário” – a maior parte da população deve ser apenas condição material do sustento dos extraordinários, ou seja, está sujeita ao exercício da “exceção da moral”. Para Raskólnikov há uma razão proporcional que ainda é – em seu tempo – desconhecida, razão que serve para saber a relação entre a quantidade dos “ordinários” em relação aos “extraordinários”. A existência dessas duas “classes” de seres humanos não é mero resultado do desentrelaçamento dos acontecimentos imanentes. Há, portanto, uma “essência de ordinário” e outra de “extraordinário” dentro de cada ser humano.
Noutro ponto, Raskólnikov se preocupa em falar da marca do “homem ordinário”: um homem ordinário, ainda que tivesse um plano grandioso para a humanidade, ainda que fosse capaz de ter um pensamento novo, nunca seria capaz de suportar o peso da quebra de uma regra moral, seja lá por que motivo fosse. Dessa forma, o “erro” (uma classe pensar pertencer à outra) é possível sim, mas...
“(...) só por partes da primeira categoria, ou seja, das pessoas ordinárias (como eu as denominei talvez de modo muito falho).“[1]
Um homem verdadeiramente ordinário, ao burlar uma regra moral, mais cedo ou mais tarde, penitenciar-se-ia, sem suportar o peso dessa quebra. “Um homem ordinário” não seria capaz de entender e absorver a “moral extraordinária”.
“Por envolvimento, é claro, às vezes pode-se açoitá-las (as pessoas extraordinárias), para que compreendam o seu lugar, porém não mais; aí nem se precisa de quem execute: elas mesmas se chicoteiam, porque são muito bem-comportadas; umas trocam esses serviços entre si, e outras se chicoteiam com as próprias mãos...”[2]
E é nesse ponto que o livro ganha um novo significado. É justamente por causa desse comentário (aparentemente despretensioso) que toda a visão do livro deve ser reformulada. Numa primeira análise (mais superficial), a respeito da obra como um todo, podemos pensar que Raskólnikov é um dos “homens extraordinários” e, em prol do seu plano maior, em prol da sua própria vida, mata uma velha usurária que sequer desfrutava do fruto de sua usura, para que, com o dinheiro dela, pudesse sair da condição miserável em que estava, condição esta que não o permitia desenvolver suas potencialidades completamente. Enxergamos, portanto, no “crime”, a qualidade de homem extraordinário. Esquecemos, porém, o “castigo”...
Analisemos agora a outra face do livro, o “castigo”. Aqui veremos que, ao contrário de um “homem extraordinário”, Raskólnikov se rende à moral de sua época, à pressão dos homens, à reprovação moral dos que sabem de seu segredo, age como o mais baixo “homem-ordinário” agiria. Ao se entregar, ao confessar o crime, foge da responsabilidade, do peso que é ser um “extraordinário”; foge da necessidade que tem todo “homem extraordinário” à “exceção da moral”. O que seriam os devaneios de Raskólnikov senão a manifestação do “homem ordinário” que ele guardava dentro de si, debatendo-se e condenando-se o tempo todo, sem aceitar aquele ato como legítimo e necessário? Um extraordinário reagiria àquela ação com indiferença, como se fosse apenas um passo rumo ao seu grandioso projeto futuro para a humanidade. Nesse sentido, o “castigo” vai mais além da própria prisão em si, da descoberta da autoria do crime por parte das autoridades. O crime em questão acontece numa circunstância peculiar porque ninguém poderia provar ser Raskólnikov o autor. Confessar o crime, em última análise, é uma forma de auto-penitência, uma forma que o “homem ordinário” acha para se mostrar, o próprio Raskólnikov havia dito para o juiz de instrução Porfiri Pietróvith que, em caso de “erro” – possível somente no caso de um ser “ordinário” pensar ser “extraordinário” –, o próprio “ordinário” trataria de se denunciar publicamente e de se penitenciar. Com a confissão, Raskólnikov comete uma “auto-flagelação”: a confissão, foi uma “auto-censurara”. Foi demonstração de que os valores morais sempre estiveram ali, vivos, prontos para serem regurgitados quando a mente do personagem já não pudesse mais digerir seus atos, foi uma espécie de “refluxo moral”. Raskólnikov estava mais preocupado com o que pensavam os próximos dele, seus amigos e familiares, estava verdadeiramente preocupado com a reprovação moral dessas pessoas que ele havia confessado para não se ver obrigado a sentir aquele peso, o peso do olhar de reprovação, da cobrança pela confissão. Cobrança que ele mesmo se fazia o tempo todo, desde o instante em que saiu do apartamento da velha.
Sem dúvidas Raskolnikov é um ordinário. Mas, até que ponto o extraordinário se aproxima do super-homem de Nietzsche? Essa investigação é por demais interessante.
Mas se o ordinário aceita essa casta, se o ordinário deseja se enquadrar nisso naturalmente devemos pensar que o peso que ele carrega dá a ele algum conforto, algum benefício. Ora, ninguém fica de um jeito que seja totalmente prejudicial a si mesmo! Mas será que podemos identificar algo de positivo em carregar nas costas a moral? Como alguém que carrega tanto peso pode encontrar algo de bom para si? Aos olhos de um extraordinário, realmente, não podemos identificar nenhuma coisa positiva nesse comportamento. Imaginemos, porém, alguém sedentário, preguiçoso e sem vontade, portanto, de qualquer movimento. Incapaz de criar, uma pessoa que adora repetir o que os outros falam ou fazem. É muito mais fácil para tal pessoa reproduzir tudo o que vê à sua volta que criar um modelo próprio e único de vida, um modelo que seu próprio corpo deveria reivindicar. Para essa pessoa é muito mais fácil simplesmente repetir, pegar tudo já feito e dado, eles trilham o caminho mais fácil possível, mas, por outro lado, o caminho mais pobre possível do ponto de vista da criação, de uma vida que fuja da besteira cotidiana. É nesse sentido que a vida moral beneficia a essas pessoas, elas simplesmente se limitam a repetir, a viver uma vida de re-ação, de “agir por causa” e não ser causa de suas ações.
Esse é o jogo dos fracos, eles sempre tentam subverter e inverter os valores do jogo dos fortes para se favorecerem disso. Fundam a moral para isso, pois ela é baseada em externalidades ontológicas, onde o que é “bom” torna-se profano e o que é “ruim” torna-se virtuoso. Porque o fraco tem sempre medo do combate, do bastar-se a si mesmo, da solidão, da força, da potência. O fraco não quer livrar-se dos grilhões da prisão, está sempre próximo ao facismo porque gosta de uma ordem dogmática superior que legitima sua moral como a única possível – já que esta é a única forma de mostrar a “corretude” da moral. É incapaz de criar, incapaz de aceitar qualquer coisa que seja diferente da lista transcendental de comportamentos que se deve manter, qualquer coisa que não seja essa identidade correspondente é condenável. Culpa o mundo por sua falha como criador. Nos comportamentos diferentes suas fraquezas se expõem, seus vazios ficam à amostra.
A relação entre os ordinários e os extraordinários é sempre um jogo de forças, de tensão. Não pense que um ordinário sempre reconhece o extraordinário e, mais ainda, não pense que ele se reconhece como ordinário. Muitas vezes muitos deles colocam sua força em sua fraqueza para aniquilar o outro, o extraordinário que lhe incomoda por colocar em cheque toda a condição de validade de sua existência. Por tirar todo o chão de seus pés. Abrir a cortina por trás da qual se esconde, vendo-se nu, o ordinário aponta seu dedo julgador para o extraordinário e, em nome de toda sua moral, aniquila o outro, depois foge usando a força que deveria ter para superar a farsa construída no arcabouço vazio da moral que chama de vida.
Mas não devemos entender essa proposição como algo maniqueísta, em outras palavras, não podemos entender que todos os ordinários são um grupo só de pessoas completamente homogêneas em suas “ordinariedades”, justamente porque, dependendo do tempo, do lugar e da pessoa o poder da moral, que está envolvida e dissolvida nos rizomas sociais, vai afetar de forma diferente cada pessoa – alguns rizomas se contraem e outros se expandem, justamente esse movimento de expansão ou de contração é que constatam a “ordinariedade” (expansão) ou a “extraordinariedade” (contração). Logo, não podemos universalizar a “ordinariedade” como algo igual em todos os ordinários. Isso Raskolnikov não consegue perceber, embora consiga vislumbrar isso no extraordinário dando um outro enfoque para essa diferença, o enfoque genético de gerações e gerações se “purificando” até chegar ao “real extraordinário”:
“(...)A imensa maioria de pessoas, o material, existe unicamente no mundo para, através de algum esforço, por algum processo até hoje misterioso, por meio de algum cruzamento de espécies e raças, finalmente fazer uma forcinha e acabar gerando em mil ao menos um indivíduo com autonomia (falo em termos aproximados, evidentes) com autonomia mais ampla, e em cada mil nasça um com autonomia ainda mais ampla. Dos indivíduos geniais nasce um entre milhões e dos grandes gênios, os que dão acabamento à humanidade, nasce um após a passagem de muitos milhares de milhões na face da Terra. Nunca palavra, não dei uma olhada na retorta em que isso acontece. Mas existe forçosamente e deve existir certa lei: aqui não pode haver acaso.”[3]
Para ele os ordinários são sempre aqueles que guardam e internalizam a moral, mais ainda, denunciam os que dela fogem ou os que a negam, simplesmente por não conseguirem aceitar a diferença, todos os extraordinários – ou a maior parte deles – que Raskolnikov cita são condenados em seu tempo e reconhecidos geniais postumamente. Os extraordinários, dessa forma, estão sempre vivendo concretamente no mundo moral e, em maior ou menor grau, são afetados pela moral. Dentro desse mundo moral, ele convive com os ordinários e com os extraordinários, mas não tem a consciência de que é ordinário ou de quem é extraordinário, muitas vezes nem mesmo sabe que é extraordinário – não que ele não conheça essa “divisão”, pois quase nenhum deve ter elaborado tal teoria, o que falo é de um sentimento de estranhamento, de distância com os que Raskolnikov chama de ordinários. Esse estranhamento, esse “ranço”, é a marca da “extraordinariedade”.
Estranho fato também que devemos observar, Raskolnikov comete um erro – como já demonstrei – ao se intitular como extraordinário, mas elabora e publica o artigo onde fala a respeito desses dois tipos de pessoas. Segundo ele, do alto de sua visão ordinária, os extraordinários, no ato de sua “extrapolação” moral, assume para com todas as pessoas um compromisso de que ao agir assim deve sempre objetivar um bem maior. Mas essa observação de Raskolnikov que “assume o extraordinário o dever de prestar à humanidade um bem maior que o mal necessário para realizá-lo” é uma observação contaminada pelo vício do peso da moral que sua consciência ordinária abriga. O extraordinário não tem qualquer obrigação moral, está acima da moral e somente pode ser envolvido na moral por externalizações de ordinários. Raskolnikov, do “alto” de sua moralidade, contaminado por sua baixeza, não poderia nunca alçar um vôo tão alto, eis a teoria de Raskolnikov.
Nietzsche, como leitor de Dostoiévski e amante da potência humana capaz de romper com qualquer moral para que seu desenvolvimento alegre e dançante não fosse preso aos rizomas morais, constrói um conceito de super-homem, que extrapola a moral e não está sequer na moral inserido. Assim, o além-humano de Nietzsche está para além do extraordinário de Dostoiévski, para quem ainda a moral existe, só pode fugir dela, anula-la sumariamente de seus miolos momentaneamente, quando da externalização de sua missão (moral [?]) de redenção da humanidade.
Nietzsche constrói ao longo de sua obra todo um pensamento filosófico não-linear e assistemático. Aproxima-se, bastante e quase sempre, de uma escrita literária, usando aforismos, parábolas, metáforas e até poesia em suas obras. Abre-se, assim, para o leitor, uma possibilidade sem número de interpretações da obra de Nietzsche, não sendo uma coletânea morta de conceitos prontos e acabados, mas algo vivo, que pulsa e pula, que ganha significância de acordo com o leitor, com a subjetividade que se conecta com aquele texto, não sendo possível saber onde acaba a filosofia e começa a literatura, principalmente em sua obra máxima, o Zaratustra. No próprio Assim falava Zaratustra, considerada como sua obra máxima, ele diz:
“De tudo o que se escreve, aprecio somente aquilo que se escreve com seu próprio sangue. Escreve com sangue; e aprenderás que o sangue é espírito.
Não é fácil compreender o sangue alheio; odeio todos aqueles que lêem por desfastio.
Aquele que conhece o leitor, nada mais faz pelo leitor. Mais um século de leitores – até o espírito estará fedendo.
Que toda a gente tenha o direito de aprender a ler, estraga, a longo prazo, não somente o escrever, senão, também, o pensar.”[4]
Nietzsche deixa clara sua crítica aos leitores, àqueles ditos exegéticos, que se debruçam nas minúcias e nos detalhes mais sórdidos do que lêem. Para Nietzsche todos os atos, inclusive a leitura, deveriam ser exercícios de criação, de tomada de significados, afirmação de singularidades – múltiplas em si mesmas. Aqui está presente toda a filosofia de Nietzsche, todo o sentido de ruptura moral que há em sua obra. Em toda sua obra está presente uma ácida crítica ao cristianismo, à moral judaico-cristã como instância castradora de potências e desejos. Para ele a moral é fundada unicamente para estabelecer a fraqueza como grandeza subvertendo a ordem das coisas. É para quebrar toda a moral que Nietzsche dedica a vastidão de sua obra. Porém, ao contrário do que pode parecer, ele não pretende colocar outra moral no lugar da que critica. E também sabe mais do que qualquer homem a impossibilidade humana de superar a moral. Por isso não trabalha a possibilidade de uma antropologia da amoralidade, nem, muito menos, tenta fundar outra moral. Ou, se de outro modo quisermos pensar, podemos dizer que o que Nietzsche devolve ao mundo no lugar da moral que combate é a arte, a criação, “um eterno sim ao jogo da criação”. A saída encontrada por Nietzsche para a superação da moral não é jogar o jogo dos fracos, mas, sim, propor um jogo de fortes, onde os fortes possam desenvolver suas vontades de potência. E esses fortes não são humanos, são pós-humanos, são sobre-humanos (Übermensch, em alemão). Nietzsche nos mostra, dessa forma, em sua filosofia da negação, uma negação ao humilde, ao fraco, ao desonrado e ao submisso para afirmar o superador dessa moral. Para ele o homem só poderia ser admirado com uma superação de si mesmo, “uma meta entre o macaco e o sobre-humano”.
Nietzsche mostra que a loucura e a criação estão sempre muito próximas e são o que podemos chamar de condições para que o sobre-humano possa ser alcançado pelo homem. Pois é na loucura que se resolve a dicotomia pensamento versus ação, é na loucura que não se distingue o fazer do pensar. Seu super-homem é um ser que não separa essas duas dimensões, expandindo suas formas de atuação no mundo, trazendo para perto o distante, fazendo dessas formas de atuação atemporais. É essa a marca inédita presente no sobre-humano, é uma eterna celebração da vida, a imanência tomando o lugar da metafísica vazia da religião; da criação instantânea tomando o lugar frio do idealismo de conceitos; da bioconsciência tomando o lugar absoluto da razão cerebral. É um jogo de poderes, onde o que é meramente humano deve ser quebrado, superado.
No super-homem não temos, portanto, nenhuma antropologia, pois, pensar para ele qualquer obrigação finalística seria instituir uma moral, uma obrigação externa às suas escolhas para a vida. Assim, toda a finalidade e todo o agir do super-homem não pode ser pensado coletivamente ou previamente. É somente o super-homem afirmando cada momento como se infinito fosse que pode estabelecer seus caminhos, sem, porém, se arrepender do que fez ou deixou de fazer. Há uma celebração das singularidades, dos desejos, dos afetos e das paixões que elevam a vontade de potência. É como supor que a volta ao momento passado conservaria a consciência das conseqüências onde agir daquela forma iria resultar. Porém, essa consciência não se conserva, não se desloca ao passado junto com seu corpo, daí a pessoa agiria do mesmo modo, pois teria as mesmas faculdades bioconscientes do momento em que de tal forma o fez.
Nietzsche pensa também um conceito antitético ao “super-homem”, o “último-homem”. O “último-homem” é aquele que “reconhece” a morte de Deus, porém, ainda continua a alimentar uma crença divinizadora, funda o “teísmo ateu”, transfere para a ciência toda a crença que o ligava a Deus, afora a ciência – e não mais a “Entidade Divina da religião” é o “Deus” que atente à crença infalível do homem. É um homem inserido num rebanho, à espera de um comando, uma voz que tenha “autoridade” para começar a agir, espera por isso como um escravo espera pela ordem do senhor, mas o senhor, na verdade, é o rebanho enquanto “unidade”, as pessoas apenas repetem o que o rebanho faz. O “último-homem” é, em última análise, o homem contemporâneo, filho o utilitarismo capitalista que compra e aceita passivamente seus “modos de vida enlatados”, pensa ser a felicidade um estado permanente de ter muito dinheiro, toma os momentos de solidão por desprezíveis e a alteridade somente como mediação entre dois seres humanos, entre dos seres “racionais”[5]. Ficamos então reduzidos a um tipo de igualdade tal que as multiplicidades se reduzem às preferências de consumo e não a posturas de vida. Já temos prontas todas as formas de vida possíveis. para o homem moderno nós vivemos o ápice dos tempos, este homem que considera como finalidade cósmica a chegada no estado atual de coisas – e não, ao contrário, o colapso geral dos tempos –, o que agora é onipotente e onisciente é o saber, a ciência, ela alcança o “status” de Divino, eis o “bem-supremo” do “último-homem”. O “último-homem” então seria apenas esta peça de uma engrenagem que controla e adestra, que move e manipula corações e mentes em direção a uma vida cada vez mais besta, cada vez mais reprodutora e passiva, cada vez mais impotente diante de seu próprio “destino”. Este é o “último-homem” que vê no homem contemporâneo sua personificação máxima.
A relação entre os ordinários – e agora, ordinário toma uma proporção muito maior que a raskolnikoviana, ordinários são todos esses que impedem a chegada do super-homem, que são muro e não ponte para sua chegada – e o super-homem é sempre um jogo de forças, de tensão. Não pense que um ordinário sempre reconhece o super-homem e, mais ainda, não pense que ele se reconhece como ordinário. Muitas vezes muitos deles colocam sua força em sua fraqueza para aniquilar o outro, o super-homem, que lhe incomoda por colocar em cheque toda a condição de validade de sua existência. Por tirar todo o chão de sues pés. Abrir a cortina por trás da qual se esconde, vendo-se nu, o ordinário aponta seu dedo julgador para o super-homem e, em nome de toda sua moral, aniquila o outro, depois foge usando a força que deveria ter para superar a farsa construída no arcabouço vazio da moral que chama de vida.
[1] Dostoiévski, Fiódor. Crime e Castigo. 4. ed (5º reimpressão); tradução, prefácio e notas de Paulo Bezerra; gravuras de Evandro Carlos Jardim. – São Paulo: Ed. 34, 2001. p. 271.
[2] Idem, ibidem., p. 271, o que está entre parênteses e em negrito, é por minha conta
[3] Idem, ibidem, página 272
[4] Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém; Do ler e escrever. /Friedrich W. Nietzsche; tradução de Mário da Silva. – 13º ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
[5] Não há alteridade somente de um homem para outro, é preciso pensar uma alteridade cósmica, onde eu tenho alteridade com o universo inteiro, com as plantas, os bichos e o vento, além dos meus “iguais”.