domingo, 31 de agosto de 2008

Neste primeiro capítulo vou analisar duas teorias sobre a humanidade, a primeira está num romance do escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) no livro “Crime e Castigo”, mais precisamente na visão do personagem Raskolnikov; a segunda é do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900). Uma primeira problematização possível a cerca dessas teorias seria tentar pensar uma antropologia em cima delas. É possível uma antropologia em “Crime e Castigo”, numa leitura dessa obra podemos pensar num projeto para uma “redenção” da humanidade – assim como em quase toda a obra do escritor russo. O próprio título do livro poderia servir de “lema” para a obra de Dostoiévski: a teoria dos “ordinários” e “extraordinários”, pensada personagem principal de “Crime e Castigo”, Raskolnikov, é uma antropologia, é uma tentativa de “salvar” a humanidade do caminho trágico que vem tomando. Já em Nietzsche, embora possamos pensar uma teoria sobre a humanidade – ou seja, podemos pensar em conjuntos de discursos coordenados para uma tentativa de interpretação da humanidade –, não podemos pensar em uma “antropologia nietzscheana” e isso decorre justamente da análise feita por ele a cerca da humanidade, nela o pensador alemão acaba por mostrar que a moral é o que funda a humanidade, que toda moral trava os impulsos criativos, é externa ao homem. Nietzsche tenta em toda a sua obra mostrar (por meio do binômio apolo-dioniso) um novo ser, um ser que está “para além do bem e do mal”, que consegue superar esses postulados morais, este ser é além-humano, é o super-homem, Nietzsche foca o seu super-homem num conceito amplamente político e estético, um ser criativo que supera um estado de reatividade – onde todos estão agindo apenas para responder a outros atos anteriores e não a partir de forças e afetações que partem de si mesmo. Nietzsche então propõe um porvir estético e criativo. Esta é uma diferença possível entre as duas visões da humanidade, mas não será o foco deste capítulo. Neste trabalho vou tentar trilhar o caminho que Nietzsche traçou ao analisar a humanidade, ao dizer que a humanidade precisa ser superada, dizer em que sentido o homem contemporâneo é o “último-homem” – um outro conceito nietzscheano – um entrave para a chegada do “super-homem”.
O romance “Crime e Castigo” de Dostoiévski nos apresenta uma história rica em teoria antropológica que se funda no pensamento do personagem principal, Raskolnikov, a respeito dos seres humanos. Para ele há duas categorias gerais de homens: os ordinários (inferiores) e os extraordinários (superiores). A partir dessa teoria – que vem à tona no meio da história – todo o romance se constrói. Raskolnikov, em condições financeiras deploráveis, mata uma velha usurária para conseguir algum dinheiro e não morrer de fome. Porém, só comete este ato por pensar pertencer à categoria dos extraordinários e tal classe poderia se permitir internamente à quebra da moral. Foi justamente nesse ponto que raskolnikov errou, ele não poderia suportar tal peso, pois era ordinário e não extraordinário como supunha ser.

O “conceito raskolnikoviano” não põe a moral como uma “categoria” a ser superada – no sentido de ruptura moral –, ele divide a humanidade em duas categorias: a dos homens ordinários e extraordinários. Para os ordinários a moral é fator punitivo e limitante, para os extraordinários, não. O que há é uma “exceção da moral”, fazendo com que os humanos extraordinários desenvolvam suas potencialidades – o que seria “benéfico“ para toda a humanidade, já que esse “desenvolvimento de potencialidades” traz “benefícios coletivos”. Essa exceção moral é ética, num sentido teleológico da busca pelo “bem comum” (ainda que esse “bem comum” venha a se efetivar sacrificando os direitos individuais de algumas pessoas). Dessa forma, seria facultado ao homem extraordinário burlar regras morais para que seu projeto grandioso não seja interrompido por questões materiais. Essa possibilidade de quebra das regras morais é facultada aos homens extraordinários, que teriam o discernimento para antever a necessidade coletiva dessa quebra – que não seria mero exercício diletante dos extraordinários. Deve-se entender, portanto, o “homem extraordinário” como portador de uma responsabilidade (assumida no exato momento em que usou a faculdade da exceção da moral) para com a imanência de quebrar regras morais somente quando estiver nessa situação. Nesse ponto, põe-se em prática uma nova moral: a “moral da exceção”. O “homem extraordinário” é, portanto, responsável por seus atos – pois age livre, deliberada e conscientemente –, o que não há é uma reprovação moral partindo de sua consciência para seus próprios atos – ainda que os ordinários o condenem (e é o que ocorre na maior parte das vezes).

A incidência do “homem extraordinário” é bem menor que seu oposto – o “ordinário”. Nesse sentido, devemos atentar para o fato de que – se, dentre milhares de “ordinários” há apenas um “extraordinário” – a maior parte da população deve ser apenas condição material do sustento dos extraordinários, ou seja, está sujeita ao exercício da “exceção da moral”. Para Raskólnikov há uma razão proporcional que ainda é – em seu tempo – desconhecida, razão que serve para saber a relação entre a quantidade dos “ordinários” em relação aos “extraordinários”. A existência dessas duas “classes” de seres humanos não é mero resultado do desentrelaçamento dos acontecimentos imanentes. Há, portanto, uma “essência de ordinário” e outra de “extraordinário” dentro de cada ser humano.

Noutro ponto, Raskólnikov se preocupa em falar da marca do “homem ordinário”: um homem ordinário, ainda que tivesse um plano grandioso para a humanidade, ainda que fosse capaz de ter um pensamento novo, nunca seria capaz de suportar o peso da quebra de uma regra moral, seja lá por que motivo fosse. Dessa forma, o “erro” (uma classe pensar pertencer à outra) é possível sim, mas...

“(...) só por partes da primeira categoria, ou seja, das pessoas ordinárias (como eu as denominei talvez de modo muito falho).“
[1]

Um homem verdadeiramente ordinário, ao burlar uma regra moral, mais cedo ou mais tarde, penitenciar-se-ia, sem suportar o peso dessa quebra. “Um homem ordinário” não seria capaz de entender e absorver a “moral extraordinária”.

“Por envolvimento, é claro, às vezes pode-se açoitá-las (as pessoas extraordinárias), para que compreendam o seu lugar, porém não mais; aí nem se precisa de quem execute: elas mesmas se chicoteiam, porque são muito bem-comportadas; umas trocam esses serviços entre si, e outras se chicoteiam com as próprias mãos...”
[2]

E é nesse ponto que o livro ganha um novo significado. É justamente por causa desse comentário (aparentemente despretensioso) que toda a visão do livro deve ser reformulada. Numa primeira análise (mais superficial), a respeito da obra como um todo, podemos pensar que Raskólnikov é um dos “homens extraordinários” e, em prol do seu plano maior, em prol da sua própria vida, mata uma velha usurária que sequer desfrutava do fruto de sua usura, para que, com o dinheiro dela, pudesse sair da condição miserável em que estava, condição esta que não o permitia desenvolver suas potencialidades completamente. Enxergamos, portanto, no “crime”, a qualidade de homem extraordinário. Esquecemos, porém, o “castigo”...

Analisemos agora a outra face do livro, o “castigo”. Aqui veremos que, ao contrário de um “homem extraordinário”, Raskólnikov se rende à moral de sua época, à pressão dos homens, à reprovação moral dos que sabem de seu segredo, age como o mais baixo “homem-ordinário” agiria. Ao se entregar, ao confessar o crime, foge da responsabilidade, do peso que é ser um “extraordinário”; foge da necessidade que tem todo “homem extraordinário” à “exceção da moral”. O que seriam os devaneios de Raskólnikov senão a manifestação do “homem ordinário” que ele guardava dentro de si, debatendo-se e condenando-se o tempo todo, sem aceitar aquele ato como legítimo e necessário? Um extraordinário reagiria àquela ação com indiferença, como se fosse apenas um passo rumo ao seu grandioso projeto futuro para a humanidade. Nesse sentido, o “castigo” vai mais além da própria prisão em si, da descoberta da autoria do crime por parte das autoridades. O crime em questão acontece numa circunstância peculiar porque ninguém poderia provar ser Raskólnikov o autor. Confessar o crime, em última análise, é uma forma de auto-penitência, uma forma que o “homem ordinário” acha para se mostrar, o próprio Raskólnikov havia dito para o juiz de instrução Porfiri Pietróvith que, em caso de “erro” – possível somente no caso de um ser “ordinário” pensar ser “extraordinário” –, o próprio “ordinário” trataria de se denunciar publicamente e de se penitenciar. Com a confissão, Raskólnikov comete uma “auto-flagelação”: a confissão, foi uma “auto-censurara”. Foi demonstração de que os valores morais sempre estiveram ali, vivos, prontos para serem regurgitados quando a mente do personagem já não pudesse mais digerir seus atos, foi uma espécie de “refluxo moral”. Raskólnikov estava mais preocupado com o que pensavam os próximos dele, seus amigos e familiares, estava verdadeiramente preocupado com a reprovação moral dessas pessoas que ele havia confessado para não se ver obrigado a sentir aquele peso, o peso do olhar de reprovação, da cobrança pela confissão. Cobrança que ele mesmo se fazia o tempo todo, desde o instante em que saiu do apartamento da velha.

Sem dúvidas Raskolnikov é um ordinário. Mas, até que ponto o extraordinário se aproxima do super-homem de Nietzsche? Essa investigação é por demais interessante.
O homem ordinário está totalmente circundado de poderes que o comandam e influenciam fortemente, mais ainda, ele concorda com essa relação vertical que, pelo menos aparentemente, acontece naturalmente. Ao concordar com essa ordem de poderes, deveres e saberes, que costumamos chamar de moral, o ordinário traz para si o peso todo do mundo que o circunda, até aquilo o que não pode suportar o peso.

Mas se o ordinário aceita essa casta, se o ordinário deseja se enquadrar nisso naturalmente devemos pensar que o peso que ele carrega dá a ele algum conforto, algum benefício. Ora, ninguém fica de um jeito que seja totalmente prejudicial a si mesmo! Mas será que podemos identificar algo de positivo em carregar nas costas a moral? Como alguém que carrega tanto peso pode encontrar algo de bom para si? Aos olhos de um extraordinário, realmente, não podemos identificar nenhuma coisa positiva nesse comportamento. Imaginemos, porém, alguém sedentário, preguiçoso e sem vontade, portanto, de qualquer movimento. Incapaz de criar, uma pessoa que adora repetir o que os outros falam ou fazem. É muito mais fácil para tal pessoa reproduzir tudo o que vê à sua volta que criar um modelo próprio e único de vida, um modelo que seu próprio corpo deveria reivindicar. Para essa pessoa é muito mais fácil simplesmente repetir, pegar tudo já feito e dado, eles trilham o caminho mais fácil possível, mas, por outro lado, o caminho mais pobre possível do ponto de vista da criação, de uma vida que fuja da besteira cotidiana. É nesse sentido que a vida moral beneficia a essas pessoas, elas simplesmente se limitam a repetir, a viver uma vida de re-ação, de “agir por causa” e não ser causa de suas ações.
Esse é o jogo dos fracos, eles sempre tentam subverter e inverter os valores do jogo dos fortes para se favorecerem disso. Fundam a moral para isso, pois ela é baseada em externalidades ontológicas, onde o que é “bom” torna-se profano e o que é “ruim” torna-se virtuoso. Porque o fraco tem sempre medo do combate, do bastar-se a si mesmo, da solidão, da força, da potência. O fraco não quer livrar-se dos grilhões da prisão, está sempre próximo ao facismo porque gosta de uma ordem dogmática superior que legitima sua moral como a única possível – já que esta é a única forma de mostrar a “corretude” da moral. É incapaz de criar, incapaz de aceitar qualquer coisa que seja diferente da lista transcendental de comportamentos que se deve manter, qualquer coisa que não seja essa identidade correspondente é condenável. Culpa o mundo por sua falha como criador. Nos comportamentos diferentes suas fraquezas se expõem, seus vazios ficam à amostra.

A relação entre os ordinários e os extraordinários é sempre um jogo de forças, de tensão. Não pense que um ordinário sempre reconhece o extraordinário e, mais ainda, não pense que ele se reconhece como ordinário. Muitas vezes muitos deles colocam sua força em sua fraqueza para aniquilar o outro, o extraordinário que lhe incomoda por colocar em cheque toda a condição de validade de sua existência. Por tirar todo o chão de seus pés. Abrir a cortina por trás da qual se esconde, vendo-se nu, o ordinário aponta seu dedo julgador para o extraordinário e, em nome de toda sua moral, aniquila o outro, depois foge usando a força que deveria ter para superar a farsa construída no arcabouço vazio da moral que chama de vida.

Mas não devemos entender essa proposição como algo maniqueísta, em outras palavras, não podemos entender que todos os ordinários são um grupo só de pessoas completamente homogêneas em suas “ordinariedades”, justamente porque, dependendo do tempo, do lugar e da pessoa o poder da moral, que está envolvida e dissolvida nos rizomas sociais, vai afetar de forma diferente cada pessoa – alguns rizomas se contraem e outros se expandem, justamente esse movimento de expansão ou de contração é que constatam a “ordinariedade” (expansão) ou a “extraordinariedade” (contração). Logo, não podemos universalizar a “ordinariedade” como algo igual em todos os ordinários. Isso Raskolnikov não consegue perceber, embora consiga vislumbrar isso no extraordinário dando um outro enfoque para essa diferença, o enfoque genético de gerações e gerações se “purificando” até chegar ao “real extraordinário”:

“(...)A imensa maioria de pessoas, o material, existe unicamente no mundo para, através de algum esforço, por algum processo até hoje misterioso, por meio de algum cruzamento de espécies e raças, finalmente fazer uma forcinha e acabar gerando em mil ao menos um indivíduo com autonomia (falo em termos aproximados, evidentes) com autonomia mais ampla, e em cada mil nasça um com autonomia ainda mais ampla. Dos indivíduos geniais nasce um entre milhões e dos grandes gênios, os que dão acabamento à humanidade, nasce um após a passagem de muitos milhares de milhões na face da Terra. Nunca palavra, não dei uma olhada na retorta em que isso acontece. Mas existe forçosamente e deve existir certa lei: aqui não pode haver acaso.”
[3]

Para ele os ordinários são sempre aqueles que guardam e internalizam a moral, mais ainda, denunciam os que dela fogem ou os que a negam, simplesmente por não conseguirem aceitar a diferença, todos os extraordinários – ou a maior parte deles – que Raskolnikov cita são condenados em seu tempo e reconhecidos geniais postumamente. Os extraordinários, dessa forma, estão sempre vivendo concretamente no mundo moral e, em maior ou menor grau, são afetados pela moral. Dentro desse mundo moral, ele convive com os ordinários e com os extraordinários, mas não tem a consciência de que é ordinário ou de quem é extraordinário, muitas vezes nem mesmo sabe que é extraordinário – não que ele não conheça essa “divisão”, pois quase nenhum deve ter elaborado tal teoria, o que falo é de um sentimento de estranhamento, de distância com os que Raskolnikov chama de ordinários. Esse estranhamento, esse “ranço”, é a marca da “extraordinariedade”.

Estranho fato também que devemos observar, Raskolnikov comete um erro – como já demonstrei – ao se intitular como extraordinário, mas elabora e publica o artigo onde fala a respeito desses dois tipos de pessoas. Segundo ele, do alto de sua visão ordinária, os extraordinários, no ato de sua “extrapolação” moral, assume para com todas as pessoas um compromisso de que ao agir assim deve sempre objetivar um bem maior. Mas essa observação de Raskolnikov que “assume o extraordinário o dever de prestar à humanidade um bem maior que o mal necessário para realizá-lo” é uma observação contaminada pelo vício do peso da moral que sua consciência ordinária abriga. O extraordinário não tem qualquer obrigação moral, está acima da moral e somente pode ser envolvido na moral por externalizações de ordinários. Raskolnikov, do “alto” de sua moralidade, contaminado por sua baixeza, não poderia nunca alçar um vôo tão alto, eis a teoria de Raskolnikov.

Nietzsche, como leitor de Dostoiévski e amante da potência humana capaz de romper com qualquer moral para que seu desenvolvimento alegre e dançante não fosse preso aos rizomas morais, constrói um conceito de super-homem, que extrapola a moral e não está sequer na moral inserido. Assim, o além-humano de Nietzsche está para além do extraordinário de Dostoiévski, para quem ainda a moral existe, só pode fugir dela, anula-la sumariamente de seus miolos momentaneamente, quando da externalização de sua missão (moral [?]) de redenção da humanidade.

Nietzsche constrói ao longo de sua obra todo um pensamento filosófico não-linear e assistemático. Aproxima-se, bastante e quase sempre, de uma escrita literária, usando aforismos, parábolas, metáforas e até poesia em suas obras. Abre-se, assim, para o leitor, uma possibilidade sem número de interpretações da obra de Nietzsche, não sendo uma coletânea morta de conceitos prontos e acabados, mas algo vivo, que pulsa e pula, que ganha significância de acordo com o leitor, com a subjetividade que se conecta com aquele texto, não sendo possível saber onde acaba a filosofia e começa a literatura, principalmente em sua obra máxima, o Zaratustra. No próprio Assim falava Zaratustra, considerada como sua obra máxima, ele diz:

“De tudo o que se escreve, aprecio somente aquilo que se escreve com seu próprio sangue. Escreve com sangue; e aprenderás que o sangue é espírito.
Não é fácil compreender o sangue alheio; odeio todos aqueles que lêem por desfastio.
Aquele que conhece o leitor, nada mais faz pelo leitor. Mais um século de leitores – até o espírito estará fedendo.
Que toda a gente tenha o direito de aprender a ler, estraga, a longo prazo, não somente o escrever, senão, também, o pensar.”
[4]

Nietzsche deixa clara sua crítica aos leitores, àqueles ditos exegéticos, que se debruçam nas minúcias e nos detalhes mais sórdidos do que lêem. Para Nietzsche todos os atos, inclusive a leitura, deveriam ser exercícios de criação, de tomada de significados, afirmação de singularidades – múltiplas em si mesmas. Aqui está presente toda a filosofia de Nietzsche, todo o sentido de ruptura moral que há em sua obra. Em toda sua obra está presente uma ácida crítica ao cristianismo, à moral judaico-cristã como instância castradora de potências e desejos. Para ele a moral é fundada unicamente para estabelecer a fraqueza como grandeza subvertendo a ordem das coisas. É para quebrar toda a moral que Nietzsche dedica a vastidão de sua obra. Porém, ao contrário do que pode parecer, ele não pretende colocar outra moral no lugar da que critica. E também sabe mais do que qualquer homem a impossibilidade humana de superar a moral. Por isso não trabalha a possibilidade de uma antropologia da amoralidade, nem, muito menos, tenta fundar outra moral. Ou, se de outro modo quisermos pensar, podemos dizer que o que Nietzsche devolve ao mundo no lugar da moral que combate é a arte, a criação, “um eterno sim ao jogo da criação”. A saída encontrada por Nietzsche para a superação da moral não é jogar o jogo dos fracos, mas, sim, propor um jogo de fortes, onde os fortes possam desenvolver suas vontades de potência. E esses fortes não são humanos, são pós-humanos, são sobre-humanos (Übermensch, em alemão). Nietzsche nos mostra, dessa forma, em sua filosofia da negação, uma negação ao humilde, ao fraco, ao desonrado e ao submisso para afirmar o superador dessa moral. Para ele o homem só poderia ser admirado com uma superação de si mesmo, “uma meta entre o macaco e o sobre-humano”.

Nietzsche mostra que a loucura e a criação estão sempre muito próximas e são o que podemos chamar de condições para que o sobre-humano possa ser alcançado pelo homem. Pois é na loucura que se resolve a dicotomia pensamento versus ação, é na loucura que não se distingue o fazer do pensar. Seu super-homem é um ser que não separa essas duas dimensões, expandindo suas formas de atuação no mundo, trazendo para perto o distante, fazendo dessas formas de atuação atemporais. É essa a marca inédita presente no sobre-humano, é uma eterna celebração da vida, a imanência tomando o lugar da metafísica vazia da religião; da criação instantânea tomando o lugar frio do idealismo de conceitos; da bioconsciência tomando o lugar absoluto da razão cerebral. É um jogo de poderes, onde o que é meramente humano deve ser quebrado, superado.

No super-homem não temos, portanto, nenhuma antropologia, pois, pensar para ele qualquer obrigação finalística seria instituir uma moral, uma obrigação externa às suas escolhas para a vida. Assim, toda a finalidade e todo o agir do super-homem não pode ser pensado coletivamente ou previamente. É somente o super-homem afirmando cada momento como se infinito fosse que pode estabelecer seus caminhos, sem, porém, se arrepender do que fez ou deixou de fazer. Há uma celebração das singularidades, dos desejos, dos afetos e das paixões que elevam a vontade de potência. É como supor que a volta ao momento passado conservaria a consciência das conseqüências onde agir daquela forma iria resultar. Porém, essa consciência não se conserva, não se desloca ao passado junto com seu corpo, daí a pessoa agiria do mesmo modo, pois teria as mesmas faculdades bioconscientes do momento em que de tal forma o fez.

Nietzsche pensa também um conceito antitético ao “super-homem”, o “último-homem”. O “último-homem” é aquele que “reconhece” a morte de Deus, porém, ainda continua a alimentar uma crença divinizadora, funda o “teísmo ateu”, transfere para a ciência toda a crença que o ligava a Deus, afora a ciência – e não mais a “Entidade Divina da religião” é o “Deus” que atente à crença infalível do homem. É um homem inserido num rebanho, à espera de um comando, uma voz que tenha “autoridade” para começar a agir, espera por isso como um escravo espera pela ordem do senhor, mas o senhor, na verdade, é o rebanho enquanto “unidade”, as pessoas apenas repetem o que o rebanho faz. O “último-homem” é, em última análise, o homem contemporâneo, filho o utilitarismo capitalista que compra e aceita passivamente seus “modos de vida enlatados”, pensa ser a felicidade um estado permanente de ter muito dinheiro, toma os momentos de solidão por desprezíveis e a alteridade somente como mediação entre dois seres humanos, entre dos seres “racionais”[5]. Ficamos então reduzidos a um tipo de igualdade tal que as multiplicidades se reduzem às preferências de consumo e não a posturas de vida. Já temos prontas todas as formas de vida possíveis. para o homem moderno nós vivemos o ápice dos tempos, este homem que considera como finalidade cósmica a chegada no estado atual de coisas – e não, ao contrário, o colapso geral dos tempos –, o que agora é onipotente e onisciente é o saber, a ciência, ela alcança o “status” de Divino, eis o “bem-supremo” do “último-homem”. O “último-homem” então seria apenas esta peça de uma engrenagem que controla e adestra, que move e manipula corações e mentes em direção a uma vida cada vez mais besta, cada vez mais reprodutora e passiva, cada vez mais impotente diante de seu próprio “destino”. Este é o “último-homem” que vê no homem contemporâneo sua personificação máxima.
Embora o ordinário não seja o contraponto do extraordinário em Raskolnikov, o último homem é o contraponto do super-homem de Nietzsche. Aqui cabe um comentário: embora não possamos equiparar o extraordinário ao super-homem, podemos equiparar último-homem ao extraordinário, pois o extraordinário carrega todo o peso da moral em seu cotidiano e apenas “escapa” à moral como se isso fosse uma concessão especial (havendo, assim, até para quebrar a moral, um dever moral), ao contrário do super-homem que nega a moral não só em momentos pontuais, mas, sim, o tempo todo. Há, aqui, uma criação ativa a partir do imoralismo – ou do amoralismo – em que o mundo do super-homem se funda, um i(a)moralismo coletivo e, ao mesmo tempo, uma moral subjetiva, feita a partir da máxima liberdade de criar e experimentar diversas formas de vivência. Em outras palavras: na maior parte do tempo o ordinário e o extraordinário são a mesma coisa: o último-homem; quando supera a moral, o extraordinário se aproxima de um rompimento com a humanidade, mas essa superação torna-se apenas momentânea, já que, no instante seguinte à realização de seu projeto grandioso, ele volta à condição moral, ele continua carregando o problema do “último-homem”. O super-homem é, então, único e exterior a todos os outros, sendo que os outros são um muro, uma erva daninha, que impedem a superação da humanidade por ela mesma, andando na direção contrária à ponte que leva ao super-homem.

A relação entre os ordinários – e agora, ordinário toma uma proporção muito maior que a raskolnikoviana, ordinários são todos esses que impedem a chegada do super-homem, que são muro e não ponte para sua chegada – e o super-homem é sempre um jogo de forças, de tensão. Não pense que um ordinário sempre reconhece o super-homem e, mais ainda, não pense que ele se reconhece como ordinário. Muitas vezes muitos deles colocam sua força em sua fraqueza para aniquilar o outro, o super-homem, que lhe incomoda por colocar em cheque toda a condição de validade de sua existência. Por tirar todo o chão de sues pés. Abrir a cortina por trás da qual se esconde, vendo-se nu, o ordinário aponta seu dedo julgador para o super-homem e, em nome de toda sua moral, aniquila o outro, depois foge usando a força que deveria ter para superar a farsa construída no arcabouço vazio da moral que chama de vida.


[1] Dostoiévski, Fiódor. Crime e Castigo. 4. ed (5º reimpressão); tradução, prefácio e notas de Paulo Bezerra; gravuras de Evandro Carlos Jardim. – São Paulo: Ed. 34, 2001. p. 271.
[2] Idem, ibidem., p. 271, o que está entre parênteses e em negrito, é por minha conta
[3] Idem, ibidem, página 272
[4] Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém; Do ler e escrever. /Friedrich W. Nietzsche; tradução de Mário da Silva. – 13º ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
[5] Não há alteridade somente de um homem para outro, é preciso pensar uma alteridade cósmica, onde eu tenho alteridade com o universo inteiro, com as plantas, os bichos e o vento, além dos meus “iguais”.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

VINICIUS FALCÃO OLVEIRA CARNEIRO









O DESFAZIMENTO DO HUMANO






Este projeto será entregue na disciplina, ministrada pela professora Eliana Sales Paiva, de Monografia I, sendo requisito obrigatório à obtenção do título de bacharel em Filosofia pela UECE (Universidade Estadual do Ceará).

Orientador (?)









FORTALEZA – CE
2008



“O rosto constrói o muro do qual o significante necessita para ricochetear, constitui o muro do significante, o quadro ou a tela. O rosto escava o buraco de que a subjetivação necessita para atravessar, constitui o buraco negro da subjetividade como consciência ou paixão, a câmera, o terceiro olho”
(Gilles Deleuze e Félix Guattari)
























INTRODUÇÃO

Como pensar uma construção coletiva e individual ao mesmo tempo? Como pensar um agenciamento de fluxos diversos, de pessoas diversas, porém de forma solitária? Como construir essas pulsões rizomáticas dentro de um mundo permeado por neuroses paralisantes, tédios frustrantes e por conflitos extasiantes? São essas inquietações desejantes que me impulsionam a escrever sobre a desconstrução da humanidade. Desconstruo a humanidade com um projeto, porém sem ter outro projeto para colocar em seu lugar. Não quero devolver ao mundo outro conjunto de normas, mapeamentos e territorializações, como é o ser humano e o humanismo. Não tenho a resposta para estas inquietações. Estas inquietações não permitem respostas. Não é no mar da resposta onde elas deságuam, mas no mar das experiências de vida, dos fluxos desejantes. Por isso, abro uma questão e antecipadamente digo que meu objetivo não é responder tais questionamentos, mas tentar estabelecer forças e agenciamentos que os permeiam, abrir todo o corpo desses questionamentos, expondo seu funcionamento, porém sem falar o que é ou o que não é pertinente, sem formar uma cartilha com esses fluxos, pois se trata de uma experimentação e não de uma direção. Só assim, traindo minhas inquietações, é que posso ser fiel a elas, evitar trapaceá-las. Fazer um jogo de perguntas e respostas seria incorrer na própria raiz do problema que levanto. A questão não é apontar a resposta ao problema, mas tentar mostrar que a única resposta que não nos interessa é aquela que fecha a questão, compreendendo todo o conteúdo da pergunta, pois isso incorreria numa rede de mostrar somente dois lados da mesma moeda: territórios, mapas e forças coercivas destruidoras de afetos bons: tudo do que quero me afastar.
A proposta é ousada, nesse sentido, não se trata de uma cartilha, pois não me proponho a trocar de lugar com tudo que critico. Em outro sentido, o que quero é fazer com que soltem as amarras que travam a possibilidade real de viver, a criação, é fazer com que seja possível sentir, mesmo dentro dessas prisões que sei haver no meio onde vivo, uma brecha para desejar nessa cela que o mundo me deu. A grande vontade de experimentação é o que me leva trilhar por este caminho espinhento e, ao mesmo tempo, prazeroso, a fim de buscar a construção de como viver só, porém sem estar livre dos diálogos e das afetações (que não necessariamente e quase nunca, na verdade, são afetações pessoais). É uma força que leva ao riso ante às coisas mais terríveis e faz com que a busca por experimentações nômades se concretize. É o riso-esquizo, o riso que trai o próprio riso, porque trai a própria palavra e as significações usuais do ato próprio de rir. Trair o riso com o próprio riso e a palavra com o riso, desterritorializar o prazer que o riso traz.
O grande desafio a que me proponho é falar de assuntos que permeiam de um modo muito próximo as nossas vidas, das primeiras afetações que sentimos ao suspiro fatal, e não pensar nas esferas inalcançáveis do Absoluto. Por isso a proposta de uma vida só; de perguntar mais do que responder; de abrir portas e destruir palácios inabitados, mais do que construir castelos ideais impenetráveis. Por isso a proposta consiste num diálogo incessante com fluxos diversos, dispersos, diferentes do conjunto significativo e normatizado chamado humano, humanismo. O filósofo tem sido “o homem que constrói um castelo e habita, envergonhado, uma choupana”. As filosofias não têm servido nem para abrir uma lata de sardinha com a validade vencida, o homem racional queda falho todos os dias ante sua impotência criativa. É preciso um grito louco, um riso-esquizo, um delírio lúbrico, um agenciamento com as tribos do deserto da solidão que guardamos dentro de nós mesmos para quebrar estas afetações tristes em que somos afogados. É preciso um agenciamento fora-dentro, um encontro com forças de fluxos diferentes de corpos, rostos, caras e bocas. Coisas como um buraco na parede, um pedaço de papel, um sonho ou um desenho sem significado aparente.
Talvez se houver alguma possibilidade de responder ao questionamento que trato de fazer neste trabalho, esta resposta seja: construir um corpo-sem-órgãos. E a "resposta" é esta porque não podemos chegar a isto, não podemos dizer que temos um, mas sempre estamos a caminho dele. É preciso que nós saibamos construir o nosso corpo-sem-órgãos, é preciso que saibamos trilhar este caminho, pois ninguém mais pode trilhá-lo por nós. A necessidade de desfazer o "eu" trata-se da descoberta que o "eu" não existe. Entre cada uma das “faculdades do eu-puro” há um delírio que foge à linha pré-determinada, é justamente esta fuga entre os pontos que faz com que eles se liguem. Os fatos são sempre muito mais caóticos do que imaginamos, é por isso que somos "um-outro", um "eu-outro", um "eu-expandido", não comprimido e afirmado em si mesmo. É preciso saber fazer o próprio corpo, órgão por órgão, pois hoje somos dominados não mais pelo poder repressor das bombas de efeito moral, das torturas e das pancadas, mas, principalmente, por meio de mecanismos muito mais sutis e imperceptíveis que permeiam nosso corpo – e, por isso mesmo, muito mais eficientes –, mecanismos que, acreditamos, estão fazendo um "bem" para nós. Nesse sentido, o corpo é pura política, e é por isso que devemos descobrir o corpo afirmando nele não uma paralisia estática de funções orgânicas, mas uma multiplicidade de significados, traçando linhas de fuga do poder que é exercido sobre o corpo, escapando dessas armadilhas invisíveis criadas para dominar o corpo. É preciso então tirar todo o conjunto de códigos autoritariamente estabelecidos em torno do corpo, o rosto, o pênis, a bunda, o umbigo, o saco escrotal e até as células sexuais, é preciso recriar tudo, sem mexer em nada, somente na estrutura de significância: pensar com a barriga, mijar com o pé, falar com os ouvidos, cheirar com os olhos e ver com a boca. Assim o corpo-sem-órgãos é extremamente estético - enquanto processo eternamente contínuo de criação de um corpo; e político - enquanto projeto de desmecanização e autonomização corporal. O corpo-sem-órgãos é necessário porque o pensamento, os sentimentos e os sentidos funcionam como um conjunto completamente integrado, as experiências deles influenciam e, em certo sentido, determinam as manifestações um do outro. Este corpo-sem-órgãos, portanto, não nega os órgãos, mas, sim, a organicidade deles, o modo como estão dispostos; o corpo-sem-órgãos é o modo pelo qual o desejo consegue desejar – também não é a forma que o desejo tem para encontrar o prazer, pois não há uma relação de falta aqui –; o corpo-sem-órgãos é uma "máquina desejante", ele não é um organismo, um sistema; é muito mais que isso que achamos, o corpo-sem-órgãos é um fluxo de intensidades desejantes que pulsam.



JUSTIFICATIVA
Ao me debruçar sobre esta temática, tento mostrar um problema que urge, tento faze com que boa parte de suas linhas sejam expostas – pois a todo momento novas linhas são criadas e, ainda que fossem estáticas e quantificáveis, ocuparia espaço maior que uma monografia, ademais não são somente destas linhas que vou me ocupar – e que, por via de conseqüência a necessidade de superar a humanidade seja explicitada.
A história da humanidade, desde os primórdios até nossos dias, foi a história da fraqueza. E a fraqueza aqui não é a falta de força bruta, mas sim a capacidade de ser por si mesmo, sem precisar introjetar entidades metafísicas (reificar) para garantir sua própria existência. No começo, esta reificação era feita através dos Totens – deuses que representavam forças da natureza –, o tempo passou e hoje nós talvez tenhamos dois grandiosos fetiches, um menor e outro maior (por ser o criador do menor): o menor é o dinheiro, que representa duas coisas ao mesmo tempo: o valor-trabalho e o capital (dinheiro que “cria” mais dinheiro); o segundo fetiche (o maior) é a própria humanidade, enquanto houver humanos haverá fetiche, pois a humanidade necessita amplamente desde “fora” para se reconhecer, assim, enquanto estivermos presos à humanidade ainda estaremos sem autonomia para criar, ainda estaremos copiando modelos pré-estabelecidos, pois nós mesmo já seremos um modelo pré-estabelecido: o homem. É o homem e não o dinheiro o nosso “alvo” para uma transformação possível, é o humanismo e não o capitalismo o “modo de produção” (de subjetividades em massa) que devemos atacar, porque o homem e o humanismo criaram os Totens, os Deuses, o Dinheiro, o Capitalismo e o próprio Humanismo. Chega de combater a conseqüência, devemos nos preocupar mais com a causa, com a raiz desta grande árvore poder. Vamos fazer rizomas.
Dessa forma, o rompimento não deve ser feito pelo viés econométrico – ainda que ele também seja indesejável –, mas, sim, pela perspectiva estética, criativa. É por uma vida mais leve e mais criativa que lutamos, é contra as formas de vida enlatadas, pré-aquecidas, vendidas no super-mercado que luto.
Portanto, me proponho a pensar uma tentativa de libertação das castas de poder, que hoje é micro e não macro, que já não mais se manifesta nas torturas com choques elétricos, ou nos apedrejamentos em praça pública, mas, justamente nessas formas de vida enlatadas que são vendidas, o poder penetra nas vidas de forma sutil, se estabelece tentando causar prazer e não dor, o poder não é mais proibitivo, hoje o poder é sedutor, convence através de afagos, beijos e abraços, não através de cacetetes. O poder já não se personifica, ele é fetiche, ele está no seu melhor amigo, na sua mãe, no seu pai, nos seus professores, muitas vezes ele é você mesmo! O poder é uma teia de aranha grandiosa que perpassa nossas vidas desde a idade mais baixa até a hora de nossa morte.
Se essa dominação existe, se chegou a tal ponto que todos somos opressões e oprimidos todo o tempo, o tempo todo, parece então não haver uma saída, ora, mas se conseguimos perceber isto – seja na forma que for – então há sim uma saída, a superação da humanidade, porém esta saúda não tem uma fórmula mágica, uma receita de bola capaz de dizer como faze-lo. Se o questionamento é justamente no sentido de quebrar tudo o que vem de fora como imposição de modelos de vida, esta superação deve ser feita de modo singular, a partir de uma criação estética, de um modelo de vida próprio, a partir de um fluxo de desejos que apenas desejam desejar e não mais o prazer. Não é mais no binômio falta-saciedade que este desejo se fundamenta, porque se isso assim ocorresse novamente seríamos escravos de modos de vida fora de nós, este desejo se realiza no próprio ato desejante, não no prazer autoritário, assassino do desejo. Para mostrar melhor este caminho até a superação da humanidade vou dialogar com alguns autores que vislumbram possibilidades inumanas com um enfoque estético e que por isso mesmo influenciaram uns aos outros em ordem cronológica. Começo por um escritor russo chamado Fiódor Dostoiévski que, apesar de ter uma obra extremamente voltada para o humano, de ter um projeto de concertar a humanidade, tem uma grandiosa riqueza nos personagens que criou, não no que faz com eles no final dos livros, mas no que são enquanto pura autonomia desejantes. Raskolnikov, um desses personagens, por se considerar um homem superior (uma “casta” que ele inventa e que engloba pessoas como Napoleão Bonaparte e César) mata uma velha usurária para ficar com seu dinheiro já que passava por uma situação financeira péssima. Há também, em outro livro – Os Demônios – do escritor russo um personagem de nome Kirílov. Este influenciou diretamente a Nietzsche com o homem-idéia (o super-homem de Nietzsche), Vou usar Dostoiévski para mostrar a moral, para mostrar o último homem de Nietzsche este conceito usada para designar aqueles humanos que irão tentar concertar a humanidade, que tentarão a todo custo elaborar um projeto ainda humano, ainda preocupado em afirmar-se enquanto gênero, enquanto unidade primeiro capítulo se desenvolve e é encerrado.
Depois vem uma “overdose” de Nietzsche em uma leitura sobre a superação da moral e toda a inversão que foi feita pela moral cristã, que inverteu o forte e o fraco para o bom e o mal. É “para além do bem e do mal” que tento encaminhar a discussão, a moral também é um entrave no processo estético de criação pois determina um padrão de comportamento, um modo de ser, a moral é típica de humanidade, é preciso superar o mundo moral e pensar para além, pensar numa possibilidade ética, mas não ética no sentido moral, e sim no sentido estético de uma vida criativa. A luta aqui é bem maior que uma simples negação da moral, pois isso ainda seria por demais reativo, ainda estaria na dependência vital de um fora, esta dependência mantem a reificação desejante do fetiche que se baseia na máquina binária desejo-prazer, ainda se baseia no conceito de imoralidade. Tento trazer uma superação da moral, que sai do campo binário do fora vital que sustenta a estrutura desejante inconveniente, para tanto é necessária uma visão amoral, só assim podemos superar a moral. Devemos então dizer que o corpo pode tudo aquilo que conseguir executar e que nada que não seja a própria impossibilidade corporal deve limitar a vontade do corpo.
Por último, tento mostrar o resultado maior da pesquiza sobre o corpo, o corpo-sem-órgãos, um conceito criado pelo teatrólogo Antonin Artaud e desenvolvido por Deleuze e Guattarri. O CsO (corpo-sem-órgãos) é o resultado não da negação dos órgãos, mas, sim, da organicidade, do organismo como um todo. É a tentativa de criar livremente as funções de cada órgão para que os desejos possam ser cada vez mais facilitados, mais desejados. Construir um corpo-sem-órgãos é deixar que o desejo possa desejar pelas simples vontade de desejar, o CsO é uma intensidade, um conjunto de fluxos, de afetos criativos, negando a moral que busca o prazer, que nega a criatividade, puramente reativa.
OBJETIVOS
Objetivos gerais: com este trabalho pretendo tentar, num grande diálogo com alguns autores, mostrar em que termos a humanidade – a personificação de todos os gêneros – atrapalha a autonomia e é reprodutora de costumes.

Objetivos específicos:
*Mostrar a necessidade da superação dos gêneros e da humanidade – o maior de todos os gêneros – como única possibilidade para alcançar uma autonomia estética de vida.
*Apresentar o conceito nietzschano de último-homem e mostrar o homem moderno como sua personificação.
*Apresentar uma ética da amoralidade como “solução” para a superação da humanidade.
Mostrar o conceito de corpo-sem-órgãos como superação às possibilidades binárias – prazer-desejo – de satisfação.

METOLODOGIA

domingo, 17 de agosto de 2008

Como pensar uma construção coletiva e individual ao mesmo tempo? Como pensar um agenciamento de fluxos diversos, de pessoas diversas, porém de forma solitária? Como construir essas pulsões rizomáticas dentro de um mundo permeado por neuroses paralisantes, tédios frustrantes e por conflitos extasiantes? São essas inquietações desejantes que me impulsionam a escrever sobre a desconstrução da humanidade. Desconstruo a humanidade com um projeto, porém sem ter outro projeto para colocar em seu lugar. Não quero devolver ao mundo outro conjunto de normas, mapeamentos e territorializações, como é o ser humano e o humanismo. Não tenho a resposta para estas inquietações. Estas inquietações não permitem respostas. Não é no mar da resposta onde elas deságuam, mas no mar das experiências de vida, dos fluxos desejantes. Por isso, abro uma questão e antecipadamente digo que meu objetivo não é responder tais questionamentos, mas tentar estabelecer forças e agenciamentos que os permeiam, abrir todo o corpo desses questionamentos, expondo seu funcionamento, porém sem falar o que é ou o que não é pertinente, sem formar uma cartilha com esses fluxos, pois se trata de uma experimentação e não de uma direção. Só assim, traindo minhas inquietações, é que posso ser fiel a elas, evitar trapaceá-las. Fazer um jogo de perguntas e respostas seria incorrer na própria raiz do problema que levanto. A questão não é apontar a resposta ao problema, mas tentar mostrar que a única resposta que não nos interessa é aquela que fecha a questão, compreendendo todo o conteúdo da pergunta, pois isso incorreria numa rede de mostrar somente dois lados da mesma moeda: territórios, mapas e forças coercivas destruidoras de afetos bons: tudo do que quero me afastar.
A proposta é ousada, nesse sentido, não se trata de uma cartilha, pois não me proponho a trocar de lugar com tudo que critico. Em outro sentido, o que quero é fazer com que soltem as amarras que travam a vontade de criação, é fazer com que seja possível sentir, mesmo dentro de todas as prisões que sei haver no meio onde vivo, um pouco de ar para não sufocar nessa cela que o mundo me deu. A grande vontade de experimentação é o que me leva trilhar por este caminho espinhento e, ao mesmo tempo, prazeroso, a fim de buscar a construção de como viver só, porém sem estar livre dos diálogos e das afetações (que não necessariamente e quase nunca são afetações pessoais). É uma força que leva ao riso ante às coisas mais terríveis e faz com que a busca por experimentações nômades se concretize. É o riso-esquizo, o riso que trai o próprio riso, porque trai a própria palavra e as significações usuais do ato próprio de rir. Trair o riso com o próprio riso e a palavra com o riso, desterritorializar o prazer que o riso traz.
O grande desafio a que me proponho é falar de assuntos que permeiam de um modo muito próximo as nossas vidas, das primeiras afetações que sentimos ao suspiro fatal, e não pensar nas esferas inalcançáveis do Absoluto. Por isso a proposta de uma vida só; de perguntar mais do que responder; de abrir portas e destruir palácios inabitados, mais do que construir castelos ideais impenetráveis. Por isso a proposta consiste num diálogo incessante com fluxos diversos, dispersos, diferentes do conjunto significativo e normatizado chamado humano, humanismo. O filósofo tem sido “o homem que constrói um castelo e habita, envergonhado, uma choupana”. As filosofias não têm servido nem para abrir uma lata de sardinha com a validade vencida, o homem racional queda falho todos os dias ante sua impotência criativa. É preciso um grito louco, um riso-esquizo, um delírio lúbrico, um agenciamento com as tribos do deserto da solidão que guardamos dentro de nós mesmos para quebrar estas afetações tristes em que somos afogados. É preciso um agenciamento fora-dentro, um encontro com forças de fluxos diferentes de corpos, rostos, caras e bocas. Coisas como um buraco na parede, um pedaço de papel, um sonho ou um desenho sem significado aparente.
Dostoiévski, ao tentar fazer um projeto de homem russo, projeta nos dilemas de seus personagens todo o drama psíquico por que passava o homem europeu no século XIX de uma forma geral, antecipa de certa forma em Raskólnikov a necessidade de construir uma vida só, uma vida de traição da moral, embora o caminho do projeto “dostoievskiano” tenha sido o inverso: ele tentou, em sua obra, uma trajetória de redenção da humanidade, através da “lei” moral. Nesse diálogo com Dostoiévski eu pretendo alcançar na obra do russo em seu sentido finalístico, mas nas pegadas amorais que ele deixou em alguns de seus personagens, como Raskólnikov, em Crime e Castigo, e Kiríllov, em Os Demônios. Dostoiévski se faz importante por mostrar, por assim dizer, “os dois lados da moeda”, em contato com ele conhecemos o “último-homem” e o “além-humano”, um ser “a-subjetivo” e impessoal, por mais negativo que se tome o sentido desse ser na obra do escritor russo. Dostoiévski inicia um diálogo que teremos com Nietezsche e Deleuze, abrindo o primeiro capítulo do trabalho intitulado de “homem contemporâneo – o último homem”, deixando claro que a temática do projeto do escritor russo ainda é atual e deixando um gancho que para que se possa falar de Nietzsche com “último homem” e a superação da moral, no capítulo seguinte.
Por seu turno, Nietzsche foi claramente influenciado por Dostoiévski em sua obra, embora tenha dado a ela um sentido completamente diverso do que o autor de Crime e Castigo deu. Nietzsche não é um continuador da obra de Dostoiévski, não é um “leitor” de Dostoiévski, resignado com os parâmetros traçados pelo autor russo, ao contrário, ele se apropria de elementos da obra do russo para fazer sua filosofia, elementos que foram tidos como “negativos” pelo autor. É nessa linha de construção criada por Nietzsche que eu tento seguir, embora nossas inquietações sejam um tanto diferentes, sobremaneira no enfoque demorado que ele dá à religião.
O último-homem, “criado” como conceito em Nietzsche e abordado em personagens de Dostoiévski, é um guardião máximo da moral e da redenção humana por meio da religião através do encadeamento entrecortado dos acontecimentos históricos. O último-homem faz a perfeita imagem do homem contemporâneo, produto do acaso – acaso este que o próprio homem não acredita haver – e da falta de uma finalidade, dos diversos intercâmbios morais, que culminam neste rebanho de fracos, neste absoluto empecilho à chegada de um ser criador, que supere os determinismos morais e consiga traçar, entre a moral e sua personalidade, uma terceira linha, uma linha de fuga diferente dessas duas, sem fazer com elas uma máquina binária e sem perder contato com elas. O último homem se vê como fruto de uma finalidade, de uma inteligência suprema, de uma razão universal que rege sua vida, do começo ao ocaso. E este ser, o último-homem, é um muro para toda a vida estética, criadora das vivências e experiências com diálogos solitários, é este ser que entrava este caminho, distorce essas construções desejantes, ao procurar a resposta já dada, ao seguir o caminho já pronto, ao trocar toda uma vida de multiplicidades da criação pela resignação que busca “A Verdade”. A finalidade, na verdade, é uma falta, nos falta a finalidade, somos frutos do acaso e julgar nossos atos é o mesmo que condenar todo o acaso, chamado humanidade, que nos originou.

Esta problemática que nos remete a Dostoiévski não é a problemática mesma da finalidade que o autor dá a sua obra, não iremos nos debruçar sobre o projeto de homem “dostoievskiano” que, embora não nos seja dado de uma maneira imediata ou precisa no texto, é sempre possível de ser captada de modo exemplar, na medida em que em toda a obra dele se repete, como um pêndulo que nos remete aos “binômios” crime e castigo, pecado e redenção, corpo e alma. O que resta a Dostoiévski, dessa forma, é “matar” seus personagens que não seguem o ideal de homem que traça ou fazer com que eles caminhem a uma redenção através da religião cristã, da fé. O que remete a Dostoiévski não é chegada ao homem ideal, mas o próprio caminho que ele traça para chegar a essa distância, é o modo como – talvez até sem perceber – ele pinta um mundo múltiplo, cheio de nuances, de experiências extremamente criativas que o processo de sua obra nos oferece, a conclusão das obras é o menos interessante, pois apontam a uma solução moral, única e castradora da criatividade, por isso apelamos aos personagens ainda “livres” da rota finalística que o autor dá a cada um, na sua mais perfeita inumanidade. E é a partir dessa vontade criativa mais livre dos personagens de Dostoiévski que Nietzsche se nos mostra, é em direção a uma estética da criação, uma tentativa de estetizar a própria vida, a partir do desfazimento do eu, do “homem”, do gênero humano, a partir da criação de um “eu-mundo”, saindo da noção tradicional do “eu-puro” ou do “eu-essência” com ânimo de definitividade, como ser. É nos personagens de Dostoiévski e da filosofia de Nietzsche que se funda a temática do capítulo segundo do trabalho “A moral – da necessidade à superação”.
Talvez se houver alguma possibilidade de responder ao questionamento que trato de fazer neste trabalho, esta resposta seja: construir um corpo-sem-órgãos. E a "resposta" é esta porque não podemos chegar a isto, não podemos dizer que temos um, mas sempre estamos a caminho dele. É preciso que nós saibamos construir o nosso corpo-sem-órgãos, é preciso que saibamos trilhar este caminho, pois ninguém mais pode trilhá-lo por nós. Nietzsche já falava em uma despersonificação, em um desfazimento da identidade do "eu", este "eu-puro" que a psicanálise procura. A necessidade de desfazer o "eu" trata-se da descoberta que o "eu" não existe. Entre cada uma das faculdades kantianas há um delírio que foge à linha pré-determinada e é justamente esta fuga entre os pontos que faz com que eles se liguem. Os fatos são sempre muito mais caóticos do que imaginamos, é por isso que somos "um-outro", um "eu-outro", um "eu-expandido", não comprimido e afirmado em si mesmo. É preciso saber fazer o próprio corpo, órgão por órgão, pois hoje somos dominados não mais pelo poder repressor das bombas de efeito moral, das torturas e das pancadas, mas, principalmente, por meio de mecanismos muito mais sutis e imperceptíveis que permeiam nosso corpo - e, por isso mesmo, muito mais eficientes -, mecanismos que, acreditamos, estão fazendo um "bem" para nós. Nesse sentido, o corpo é pura política, e é por isso que devemos descobrir o corpo afirmando nele não uma paralisia estática de funções orgânicas, mas uma multiplicidade de significados, traçando linhas de fuga do poder que é exercido sobre o corpo, escapando dessas armadilhas invisíveis criadas para dominar o corpo. É preciso então tirar todo o conjunto de códigos autoritariamente estabelecidos em torno do corpo, o rosto, o pênis, a bunda, o umbigo, o saco escrotal e até as células sexuais, é preciso recriar tudo, sem mecher em nada, somente na estrutura de significância: pensar com a barriga, mijar com o pé, falar com os ouvidos, cheirar com os olhos e ver com a boca. Assim o corpo-sem-órgãos é extremamente estético - enquanto processo eternamente contínuo de criação de um corpo´; e político - enquanto projeto de desmecanização e autonomização corporal. O corpo-sem-órgãos é necessário porque o pensamento e os sentimentos, os sentidos, são um conjunto completamente integrado, as experiências deles influenciam e determinam, de alguma forma, as manifestações do outro. Este corpo-sem-órgãos, portanto, não nega os órgãos, mas, sim, a organicidade deles, o modo como estão dispostos; o corpo-sem-órgãos é o modo pelo qual o desejo consegue desejar - também não é a forma que o desejo tem para encontrar o prazer, pois não há uma relação de falta aqui -; o corpo-sem-órgãos é uma "máquina desejante", portanto ele não é um organismo, um sistema, é muito mais que isso, o corpo-sem-órgãos é um fluxo de intensidades desejantes que pulsam.

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Gozo solitário
Deitou na cama e, vagarosamente, fechou os olhos.

Esqueceu das horas. Há muito tempo a janela do quarto estava fechada. A única noção de tempo que tinha é que estava no período de carnaval. A luminosidade do sol, se por ventura nessa hora estivesse fazendo sol, seria evitada pela janela fechada. Não sabia se era dia ou noite. Sábado de carnaval ou quarta-feira de cinzas. Várias e várias vezes dormira e acordara desde a sexta-feira, quando decidiu não viajar no carnaval.

Ficara apenas ali, quase sem se mover em cima da cama quente. Não falara nada. Não se levantara para nada. Apesar da fome e da sede. Principalmente da sede.

Ali, em cima da cama quente. Apenas mais uma de tantas as vezes que acordara nesse carnaval. Fechou os olhos de novo, mas já sem vontade de dormir. Também sem vontade de levantar. Começou a pensar em coisas sem importância. Começou a tocar seu próprio corpo nu. Começou a se masturbar e a emitir grunhidos. Aquele som gutural e aquele cheiro acre se juntavam quase simbioticamente. Era uma experiência única. E cada vez mais a masturbação ficava mais intensa. E cada vez mais as coisas estranhas do pensamento eram mais estranhas. Até que as cobertas ficaram inundadas de gozo. E o cheiro se dissipou pela casa...

Virou de lado e dormiu. Mais uma vez.

domingo, 25 de maio de 2008

apenas mais um conto..

Corolina
Era dia em cima da colina quando Carolina ia dormir. Carolina não dormira a noite toda em cima da colina até quando amanhecia e ela ia dormir. Ela pensava em muitas coisas e, ao mesmo tempo, em coisa alguma.

Era dia em cima da minha cabeça quando eu acordava. A água caia em cima de minha cabeça enquanto eu pensava onde estava Carolina. Mas isso pouco importava, desde que ela se lembrasse de descer a colina.

Eu não parecia pensar em coisa alguma. Nem em Carolina. Carolina: a garota da colina.

Frente ao espelho eu derrubava um pouco de minha máscara: minha barba.

Carolina apenas dormia. Apenas sonhava. Um sonho sem imagens claras. Sem cores alegres. Mas não era um sonho triste. Absolutamente. Quantos anjos já apareceram no sonho de Carolina enquanto eu falava? Será que ela contou? Será que vai lembrar?

Carolina apenas sorria enquanto sonhava. E eu apenas sonhava que Carolina sorria.

Talvez algum dia ela pudesse me ver. Talvez algum dia eu voltasse a me encontrar com Carolina depois daquela noite sem dormir em cima da corolina.
Vinicius Falcão

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

A dor da responsabilidade

Manhã de chuva, ela havia saído de casa pra comprar qualquer coisa pra sua mãe – era aniversário da velha – e ele saíra para trabalhar como em qualquer outro dia comum. Quando a chuva começou, ambos se protegeram da chuva embaixo da mesma padaria velha do bairro. Apesar de ser um bairro pequeno, eles nunca tinham se visto. Sentiu vontade de falar com ele, mas não arriscou. O outro ainda abriu a boca, mas desistiu. A chuva passou os dois seguiram seus caminhos. Ela conseguiu o presente: um perfume barato, estava sem emprego. Ele recebeu a péssima notícia: estava demitido. Procurar trabalho era tudo o que ele não queria.

Os dias iam passando e esses encontros casuais sempre aconteciam. Ele já até havia arrumado outro emprego, até que tomou coragem e convidou a garota para sair. Foram ver um filme. Ele fez questão de pagar a entrada dela. Não aconteceram beijos, nem abraços apertados. Eles se trataram com a mesma frieza daqueles dias de chuva. Conversaram um pouco e marcaram de sair outro dia. Quase sempre eram programas leves, como cinemas, barzinhos, parques. E isso tudo foi crescendo a cada dia, sem que os dois percebessem. Nunca um deles olhou para dentro de si e se perguntou o que realmente sentia pelo outro. Se era só amizade, se era amor. Se havia desejo. Eles realmente não sabiam, não pensavam nisso. Ignoravam. Esse pensamento era inevitável, algum dia um dos dois iria pensar.

O pior aconteceu: ele pensou primeiro. E pensou ser amor aquilo o que sentia. Sua decisão estava tomada: iria contar para ela, pedir para namorar, serem um casalzinho feliz. Casar, ter filhos, morrerem velhinhos e juntos. Mas as linhas da vida não são tão simples assim.

Enquanto ele tomava coragem para contar, cada encontro era uma tortura. Às vezes ele até fugia, inventava uma desculpa. Um dor de dente, uma falta de dinheiro, uma doença pra mãe. Qualquer coisa. Estar com aquela garota e não poder tocá-la como mulher era uma tortura para ele. Aquela amizade não fazia mais sentido algum na cabeça dele.

– Tenho uma coisa pra te falar.
– Fala...
– Na verdade, eu não sei nem por onde começar. Mas eu acho que você deve perceber alguma coisa estranha em mim nessas últimas semanas.
– Sim, percebi mesmo. O que aconteceu? Posso te ajudar?
– Pode. Mas antes eu tenho que falar tudo o que eu sinto pra você... por você... é tudo muito confuso ainda na minha cabeça. Quero falar isso tudo de uma vez. É que eu te... eu te amo... é isso, eu quero ficar do teu lado, mas não como amigo, não suporto mais essa amizade. Estar com você se tornaria uma tortura pra mim se eu continuasse assim, só amigo.

Ela ficou sem reação, não tinha nem mesmo o que dizer. O silêncio se estendeu entre eles por uns cinco minutos, até que ela falou.

– Você não vai querer mais falar comigo se eu não quiser namorar você?
– Não, não vou suportar te ver e não te ter.
– Entendo... Acho que eu também agiria assim no seu lugar. Mas o problema é que nunca me vi te beijando. Sendo sua namorada. Para mim você não passa de uma pessoa muito querida. Nada mais que isso. Não consigo te ver além disso.
– Tudo bem. Você pode pensar o tempo que quiser. Mas não quero te ver enquanto isso.

E assim os dois se despediram. Cada um com uma lágrima escorrendo no canto do olho. A falta que um fazia ao outro era muito grande, cada um sentia isso a seu modo. O garoto sentia a falta do que nunca teve: os beijos e as carícias de mulher dela. Ela sentiria falta do que sempre teve: a amizade e o companheirismo do rapaz. E tudo isso era muito complexo para aquelas duas mentes jovens que apenas estavam começando a descobrir a vida.

Na cabeça dela é que ficaram os pensamentos, as dúvidas. Na dele tudo estava muito claro: ele só queria retomar tudo se fosse de outro modo, sob outras regras, com um novo formato, uma nova relação. Para ela era tudo novo ali. Aquela condição egoísta dele de só estar com ela sendo namorado, aquele sentimento tão grande que ele dizia sentir, as lágrimas e até a separação dos dois por um tempo impreciso, talvez infinito. Ela só sentia a vontade de protelar essa decisão, pois sabia que iria dizer não. Mesmo que isso doesse muito aos dois.

E assim o tempo ia passando. Ele ia ficando cada dia mais magoado pela ausência dela e da sua decisão. Essa maldita decisão emperrava sua vida. Se ela ao menos dissesse não ele poderia seguir a vida e começar a pensar em esquecer, em amornar esse amor. Mas ela não respondia e fugia todas as vezes que ele a procurava. Quando se viam na rua, ela corria. Ela tomava até chuva, mas não entrava no mesmo lugar onde ele estava se abrigando da chuva. Se ela era egoísta por não responder logo a resposta que já tinha; ele, por outro lado, era egoísta por chantagear a garota, por achar que, apesar de não amá-lo, ela iria se sacrificar e ficar com ele por ser mais pesada do que o sacrifício a ausência dele na vida dela. Não pensava um só segundo no bem estar de quem dizia amar.

Quando ela disse não, ele começou a chorar. Negou o amor três vezes como Pedro fez com Cristo. Mas não adiantava chorar ou negar, o amor estava ali. Era a causa do ódio, era a causa da separação. O amor era tudo isso e muito mais. Se o amor era bom ele sequer poderia saber, pois nunca tinha experimentado. Talvez algum dia ele pudesse aprender que o amor é um coquetel de sentimentos, que o amor tem muito do ódio, da paixão, da fúria, do companheirismo, do tesão, do desejo, da amizade... Antes dessa descoberta ninguém está preparado para amar, nem para ser amado.
[Vinicius Falcão]

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

FLORES

Uma porção de coisas que acontecem sem que você se dê conta fazem com que tudo mude; quando essas mediações de coisas que interagem concorrem para essa mudança fazendo com que tudo mude você nem se dá conta da mudança. Não se pode olhar pra trás e esperar que tudo volte a ser como era, esqueça: isso não vai acontecer. Se a mudança não te agrada só resta uma coisa: interfira na roda das "causalidades" para que tudo se modifique e fique do jeito que você quer que seja.


Incertezas que corroem, que ferem e fazem com que se antecipe um sentimento que não deveria ser sentido, mas está sendo. Nesse momento eu queria ser como flores, flores que morrem e apodrecem num lixão; esse abandono, esse apodrecimento, talvez pudesse ser chamado de dor, mas a dor é uma reflexão a respeito de um estímulo negativo provocado sobre nós e não o próprio estímulo negativo. A dor não é a faca encravada na pele, a dor é a consequência desse ato; a dor não é o desprezo de quem se ama, mas, sim, o fato de se sentir desprezado - ainda que isso não seja verdade. E todo o futuro poderia ser antecipado, mesmo que articulado somente sob um ponto de vista, mesmo que tudo desmorone com as mediações da vida.

Devagar os fios desencontrados se encaixam. Preciso pensar muito nisso, não preciso olhar muito em frente. O que eu vejo é a mesma imagem que eu via instantes atrás, ainda há as mesmas distorções, que não consigo identificar - e sei que não posso conseguir, embora saida que elas existem.

Passo, pulo, louco, fico mais um pouco, tentando entender essa geometria não linear que se configura à minha frente. Ando e desando, num ato, num átimo, eu consigo segurar tudo com a mão, mesmo que o tudo que eu fale não seja palpável.

Você não pode entender minha linguagem, desculpe. Não, não é que eu não queira ser claro, é que isso é apenas um pensamento, e eu quero que seja somente um pensamento, ainda que um pouco contaminado pela metalinguagem que impregna meu pensamento.

[Metalinguagem é teoria do conhecimento (?)

As coisas só se esclarecem através da metalinguagem. Se você sente algo, seja um sentimento subjetivo, seja um toque, isso pode ser apenas um sentimento, mas pode ser mais que isso, você pode pensar no que é anterior ao sentimento (causa) ou no que é posterior ao sentimento (consequência)

Isso é metalinguagem].

O copo não está completo, há sempre uma parte vazia. Por mais que você consiga juntar algo para completa-lo. Não adianta, ele sempre estará vazio. Viver é tentar completar esse copo que nunca se completa em vida, só a morte é capaz de completa-lo, pois a vida, à medida que o tempo passa, aumenta um pouco as paredes do copo e o ritmo da vida é sempre maior que o ritmo humano de completar o copo.

[ACHO QUE CONTINUA...]

sábado, 5 de janeiro de 2008

Eu acho que ele dormiu. Hoje talvez seja o melhor dia dentre as últimas semanas. Eu posso falar com ela livremente. Eu sinto muitas saudades dela. Estou muito alegre por eles se irem.

Esse cheiro acre me causa nojo. Essas pessoas dormindo, essa televisão. A sobreposição dessas imagens causam-me asco. Asco. AS-CO!

Não entendo a razão de ter que sempre justificar minha solidão. Não entendem que eu preciso de solidão? É... acho que não. Todos tem uma fobia "esponjóide" de solidão e acham que o grande objetivo da vida e fugir da solidão, sem perceber que é uma fuga inútil, pois é uma fuga de si mesmo, como um cachorro girando tentando morder a ponta do rabo.

Mas eu sei - e também sei que todos sabem, se não admitem é por que preferem a mentira - que no final só vai restar eu mesmo. Que no final a solidão é a única realidade óbvia, concreta, palpável. Material.

No final de tudo sempre devo estar eu mesmo ali, estendido no chão, para consolar a metade vazia de mim e para completa-la com as condições necessárias para se reeguer, ainda que seja para se reerguer ante a morte.

Eu nunca estive tão feliz. Eles vão embora. Ela está aqui. A noite é muito curta. A noite é tão feliz... feliz... E esse cheiro acre, que me enoja, também lembra deles, que vão embora amanhã... E por isso sou feliz... feliz...