domingo, 17 de agosto de 2008

Como pensar uma construção coletiva e individual ao mesmo tempo? Como pensar um agenciamento de fluxos diversos, de pessoas diversas, porém de forma solitária? Como construir essas pulsões rizomáticas dentro de um mundo permeado por neuroses paralisantes, tédios frustrantes e por conflitos extasiantes? São essas inquietações desejantes que me impulsionam a escrever sobre a desconstrução da humanidade. Desconstruo a humanidade com um projeto, porém sem ter outro projeto para colocar em seu lugar. Não quero devolver ao mundo outro conjunto de normas, mapeamentos e territorializações, como é o ser humano e o humanismo. Não tenho a resposta para estas inquietações. Estas inquietações não permitem respostas. Não é no mar da resposta onde elas deságuam, mas no mar das experiências de vida, dos fluxos desejantes. Por isso, abro uma questão e antecipadamente digo que meu objetivo não é responder tais questionamentos, mas tentar estabelecer forças e agenciamentos que os permeiam, abrir todo o corpo desses questionamentos, expondo seu funcionamento, porém sem falar o que é ou o que não é pertinente, sem formar uma cartilha com esses fluxos, pois se trata de uma experimentação e não de uma direção. Só assim, traindo minhas inquietações, é que posso ser fiel a elas, evitar trapaceá-las. Fazer um jogo de perguntas e respostas seria incorrer na própria raiz do problema que levanto. A questão não é apontar a resposta ao problema, mas tentar mostrar que a única resposta que não nos interessa é aquela que fecha a questão, compreendendo todo o conteúdo da pergunta, pois isso incorreria numa rede de mostrar somente dois lados da mesma moeda: territórios, mapas e forças coercivas destruidoras de afetos bons: tudo do que quero me afastar.
A proposta é ousada, nesse sentido, não se trata de uma cartilha, pois não me proponho a trocar de lugar com tudo que critico. Em outro sentido, o que quero é fazer com que soltem as amarras que travam a vontade de criação, é fazer com que seja possível sentir, mesmo dentro de todas as prisões que sei haver no meio onde vivo, um pouco de ar para não sufocar nessa cela que o mundo me deu. A grande vontade de experimentação é o que me leva trilhar por este caminho espinhento e, ao mesmo tempo, prazeroso, a fim de buscar a construção de como viver só, porém sem estar livre dos diálogos e das afetações (que não necessariamente e quase nunca são afetações pessoais). É uma força que leva ao riso ante às coisas mais terríveis e faz com que a busca por experimentações nômades se concretize. É o riso-esquizo, o riso que trai o próprio riso, porque trai a própria palavra e as significações usuais do ato próprio de rir. Trair o riso com o próprio riso e a palavra com o riso, desterritorializar o prazer que o riso traz.
O grande desafio a que me proponho é falar de assuntos que permeiam de um modo muito próximo as nossas vidas, das primeiras afetações que sentimos ao suspiro fatal, e não pensar nas esferas inalcançáveis do Absoluto. Por isso a proposta de uma vida só; de perguntar mais do que responder; de abrir portas e destruir palácios inabitados, mais do que construir castelos ideais impenetráveis. Por isso a proposta consiste num diálogo incessante com fluxos diversos, dispersos, diferentes do conjunto significativo e normatizado chamado humano, humanismo. O filósofo tem sido “o homem que constrói um castelo e habita, envergonhado, uma choupana”. As filosofias não têm servido nem para abrir uma lata de sardinha com a validade vencida, o homem racional queda falho todos os dias ante sua impotência criativa. É preciso um grito louco, um riso-esquizo, um delírio lúbrico, um agenciamento com as tribos do deserto da solidão que guardamos dentro de nós mesmos para quebrar estas afetações tristes em que somos afogados. É preciso um agenciamento fora-dentro, um encontro com forças de fluxos diferentes de corpos, rostos, caras e bocas. Coisas como um buraco na parede, um pedaço de papel, um sonho ou um desenho sem significado aparente.
Dostoiévski, ao tentar fazer um projeto de homem russo, projeta nos dilemas de seus personagens todo o drama psíquico por que passava o homem europeu no século XIX de uma forma geral, antecipa de certa forma em Raskólnikov a necessidade de construir uma vida só, uma vida de traição da moral, embora o caminho do projeto “dostoievskiano” tenha sido o inverso: ele tentou, em sua obra, uma trajetória de redenção da humanidade, através da “lei” moral. Nesse diálogo com Dostoiévski eu pretendo alcançar na obra do russo em seu sentido finalístico, mas nas pegadas amorais que ele deixou em alguns de seus personagens, como Raskólnikov, em Crime e Castigo, e Kiríllov, em Os Demônios. Dostoiévski se faz importante por mostrar, por assim dizer, “os dois lados da moeda”, em contato com ele conhecemos o “último-homem” e o “além-humano”, um ser “a-subjetivo” e impessoal, por mais negativo que se tome o sentido desse ser na obra do escritor russo. Dostoiévski inicia um diálogo que teremos com Nietezsche e Deleuze, abrindo o primeiro capítulo do trabalho intitulado de “homem contemporâneo – o último homem”, deixando claro que a temática do projeto do escritor russo ainda é atual e deixando um gancho que para que se possa falar de Nietzsche com “último homem” e a superação da moral, no capítulo seguinte.
Por seu turno, Nietzsche foi claramente influenciado por Dostoiévski em sua obra, embora tenha dado a ela um sentido completamente diverso do que o autor de Crime e Castigo deu. Nietzsche não é um continuador da obra de Dostoiévski, não é um “leitor” de Dostoiévski, resignado com os parâmetros traçados pelo autor russo, ao contrário, ele se apropria de elementos da obra do russo para fazer sua filosofia, elementos que foram tidos como “negativos” pelo autor. É nessa linha de construção criada por Nietzsche que eu tento seguir, embora nossas inquietações sejam um tanto diferentes, sobremaneira no enfoque demorado que ele dá à religião.
O último-homem, “criado” como conceito em Nietzsche e abordado em personagens de Dostoiévski, é um guardião máximo da moral e da redenção humana por meio da religião através do encadeamento entrecortado dos acontecimentos históricos. O último-homem faz a perfeita imagem do homem contemporâneo, produto do acaso – acaso este que o próprio homem não acredita haver – e da falta de uma finalidade, dos diversos intercâmbios morais, que culminam neste rebanho de fracos, neste absoluto empecilho à chegada de um ser criador, que supere os determinismos morais e consiga traçar, entre a moral e sua personalidade, uma terceira linha, uma linha de fuga diferente dessas duas, sem fazer com elas uma máquina binária e sem perder contato com elas. O último homem se vê como fruto de uma finalidade, de uma inteligência suprema, de uma razão universal que rege sua vida, do começo ao ocaso. E este ser, o último-homem, é um muro para toda a vida estética, criadora das vivências e experiências com diálogos solitários, é este ser que entrava este caminho, distorce essas construções desejantes, ao procurar a resposta já dada, ao seguir o caminho já pronto, ao trocar toda uma vida de multiplicidades da criação pela resignação que busca “A Verdade”. A finalidade, na verdade, é uma falta, nos falta a finalidade, somos frutos do acaso e julgar nossos atos é o mesmo que condenar todo o acaso, chamado humanidade, que nos originou.

Esta problemática que nos remete a Dostoiévski não é a problemática mesma da finalidade que o autor dá a sua obra, não iremos nos debruçar sobre o projeto de homem “dostoievskiano” que, embora não nos seja dado de uma maneira imediata ou precisa no texto, é sempre possível de ser captada de modo exemplar, na medida em que em toda a obra dele se repete, como um pêndulo que nos remete aos “binômios” crime e castigo, pecado e redenção, corpo e alma. O que resta a Dostoiévski, dessa forma, é “matar” seus personagens que não seguem o ideal de homem que traça ou fazer com que eles caminhem a uma redenção através da religião cristã, da fé. O que remete a Dostoiévski não é chegada ao homem ideal, mas o próprio caminho que ele traça para chegar a essa distância, é o modo como – talvez até sem perceber – ele pinta um mundo múltiplo, cheio de nuances, de experiências extremamente criativas que o processo de sua obra nos oferece, a conclusão das obras é o menos interessante, pois apontam a uma solução moral, única e castradora da criatividade, por isso apelamos aos personagens ainda “livres” da rota finalística que o autor dá a cada um, na sua mais perfeita inumanidade. E é a partir dessa vontade criativa mais livre dos personagens de Dostoiévski que Nietzsche se nos mostra, é em direção a uma estética da criação, uma tentativa de estetizar a própria vida, a partir do desfazimento do eu, do “homem”, do gênero humano, a partir da criação de um “eu-mundo”, saindo da noção tradicional do “eu-puro” ou do “eu-essência” com ânimo de definitividade, como ser. É nos personagens de Dostoiévski e da filosofia de Nietzsche que se funda a temática do capítulo segundo do trabalho “A moral – da necessidade à superação”.
Talvez se houver alguma possibilidade de responder ao questionamento que trato de fazer neste trabalho, esta resposta seja: construir um corpo-sem-órgãos. E a "resposta" é esta porque não podemos chegar a isto, não podemos dizer que temos um, mas sempre estamos a caminho dele. É preciso que nós saibamos construir o nosso corpo-sem-órgãos, é preciso que saibamos trilhar este caminho, pois ninguém mais pode trilhá-lo por nós. Nietzsche já falava em uma despersonificação, em um desfazimento da identidade do "eu", este "eu-puro" que a psicanálise procura. A necessidade de desfazer o "eu" trata-se da descoberta que o "eu" não existe. Entre cada uma das faculdades kantianas há um delírio que foge à linha pré-determinada e é justamente esta fuga entre os pontos que faz com que eles se liguem. Os fatos são sempre muito mais caóticos do que imaginamos, é por isso que somos "um-outro", um "eu-outro", um "eu-expandido", não comprimido e afirmado em si mesmo. É preciso saber fazer o próprio corpo, órgão por órgão, pois hoje somos dominados não mais pelo poder repressor das bombas de efeito moral, das torturas e das pancadas, mas, principalmente, por meio de mecanismos muito mais sutis e imperceptíveis que permeiam nosso corpo - e, por isso mesmo, muito mais eficientes -, mecanismos que, acreditamos, estão fazendo um "bem" para nós. Nesse sentido, o corpo é pura política, e é por isso que devemos descobrir o corpo afirmando nele não uma paralisia estática de funções orgânicas, mas uma multiplicidade de significados, traçando linhas de fuga do poder que é exercido sobre o corpo, escapando dessas armadilhas invisíveis criadas para dominar o corpo. É preciso então tirar todo o conjunto de códigos autoritariamente estabelecidos em torno do corpo, o rosto, o pênis, a bunda, o umbigo, o saco escrotal e até as células sexuais, é preciso recriar tudo, sem mecher em nada, somente na estrutura de significância: pensar com a barriga, mijar com o pé, falar com os ouvidos, cheirar com os olhos e ver com a boca. Assim o corpo-sem-órgãos é extremamente estético - enquanto processo eternamente contínuo de criação de um corpo´; e político - enquanto projeto de desmecanização e autonomização corporal. O corpo-sem-órgãos é necessário porque o pensamento e os sentimentos, os sentidos, são um conjunto completamente integrado, as experiências deles influenciam e determinam, de alguma forma, as manifestações do outro. Este corpo-sem-órgãos, portanto, não nega os órgãos, mas, sim, a organicidade deles, o modo como estão dispostos; o corpo-sem-órgãos é o modo pelo qual o desejo consegue desejar - também não é a forma que o desejo tem para encontrar o prazer, pois não há uma relação de falta aqui -; o corpo-sem-órgãos é uma "máquina desejante", portanto ele não é um organismo, um sistema, é muito mais que isso, o corpo-sem-órgãos é um fluxo de intensidades desejantes que pulsam.

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