sábado, 14 de julho de 2007

Contraverdade

Eu queria espancar o mundo a minha volta. E tudo poderia ser recolocado, em lugares diferentes e nos mesmos lugares. E tudo poderia ser repensado, à medida que essas mediações fossem somente possíveis no intelecto, nunca no plano da mundaneidade da vida. Eu queria esperar o tempo mais demorado, para ver o que diferente teria e quem seria apenas a mesma coisa, na mesma casca, na mesma casa. E tudo poderia ser disfarçado em forma de adeus. E tudo pareceria apenas sonho, enquanto sonho, enquanto estivéssemos também acordados. Nada poderia fazer sentido nessa dada realidade, mas o que faz sentido é o que menos tem graça, é o que é menos atraente. Eu poderia escrever tudo de uma forma clara e menos fechada, e todos diriam que minha linguagem é objetiva. Mas eu não sou objetivo, meu pensamento não é objetivo. Nenhum pensamento é objetivo, e nem mesmo este pensamento o é.

Fechado como um caracol caminha o homem que não conhecemos. Pensando em coisas demais, caminha o homem que jamais conheceremos. O homem que mora dentro de nós, em algum lugar ainda não descoberto, na mais profunda das reentrâncias dos nossos pensamentos. Dorme eternamente, este preguiçoso, porque ele nunca quererá levantar. Apenas sonha, e nós somos cada um desses sonhos, e nós somos cada um desses momentos sonhados por ele, pelo nosso ideal de ser. Sua existência não nos importa, porque não faz diferença se ele existe ou não. A existência – o que conhecemos, sentimos e vivemos –, se dá nesse plano, que é o real (ou o que chamamos de real), nesse plano da imanência, além daqui há apenas especulações e incertezas. Nada podemos afirmar acerca de outros planos que não este.

Os lugares diferentes, as pessoas diferentes, as palavras diferentes, as diferentes formas de mediação e linguagem falham à medida que tentamos conhecê-los. Sempre que tentamos conhecer algo, este algo nos escapa, pois a única coisa que existe é o devir, é a mudança. E é por isso que somente podemos captar partes de algo, e não um algo inteiro, pois nada nunca é, tudo sempre está sendo, está em processo. E o não-ser não pode ser modificado, pois, sob o ponto de vista do ser, o não ser já foi e não mais pode ser, pois ele sempre é o mesmo e nunca o outro. O ser é sempre o outro e nunca o mesmo, assim, o não-ser pôde co-existir com o ser, porém não se modificou e ficou perdido em algum lugar do tempo, logo após a primeira mudança do primeiro ser. E nossos sentidos podem afirmar isso, pois só captamos qualquer coisa que seja através dos sentidos, e nossos sentidos sempre afirmam o devir: o som que começa e termina, vem, então, o silêncio; e mesmo numa música, muitas vezes temos o silêncio em algumas partes, de repente, tudo pára, e nossos ouvidos atestam isso; o mesmo acontece com os outros sentidos, a visão, por exemplo, atesta a evolução, o envelhecimento das coisas (ou rejuvenescimento); o paladar atesta o gosto da comida, até que o paladar também atesta que já não há mais gosto, não há mais comida na boca, pois ela foi para o intestino. Assim o não-ser, nem ser “não-foi”, em algum tempo e sob algum ponto de vista, ele pôde ser pensado, a grande questão é que o não-ser foi superado, por não conseguir entrar na roda do devir.

Também nesse sentido que não há uma verdade eterna, imutável e absoluta. A verdade é o ser, só o ser é a verdade, e o ser nunca é perene, só o que é perene é a mudança.
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A tradição da filosofia sempre se preocupou com a questão da verdade. Do platonismo à filosofia de Kant e Hegel (já no século XIX) foi assim. A filosofia ficou por séculos e séculos - principalmente durante a Idade Média - presa aos chamados autores que eram tidos como "última palavra", ou seja, citar Aristóteles era o mesmo que mostrar a verdade, e ponto. E foi nesse sentido que Petrarca afirmou a dúvida como única certeza e é nesse sentido que eu nego a verdade absoluta. A mesma dúvida que teve seu apogeu em Descartes quando afirma o ser através da "teoria do cogito": estou sentado diante desse computador, mas o computador, o mouse, a mesinha, minhas mãos e todo o resto são meras figurações do meu pensamento, tudo não passa de um sonho; estou numa praia, e o calor do sol, a água do mar e todo o mais são figurações da minha mente; dessa forma, tudo o que há fora de mim pode ser mera criação da minha mente, o que existe, então, é o pensamento, o não-ser não pode pensar, se o não-ser não pensa, algo pensa, daí "penso, logo, existo".

1 Comment:

Anônimo said...

Pela densidade de composição, pelo manifesto das contradições em estilo irreverente e perturbador, pela verdade bem disfarçada e notoriamente exaltada pelas ambigüidades do discurso. Parabéns!